Mal de amores, de Ángeles Mastretta

Sábado, 11 de abril de 2015





RELEITURA

Opinião
Ángeles Mastretta é mais um exemplo do quanto os escritores latino-americanos são exímios contadores de histórias. Na minha opinião, encaixa perfeitamente nesse grupo privilegiado, nesse grupo onde se encontram Isabel Allende, Luis Sepúlveda, García Márquez ou Laura Esquível.
Na minha estante, tenho há já alguns anos duas obras desta autora mexicana – a que acabei de reler e Arráncame la vida. Antes de decidir-me a reler uma delas, recordava que tanto uma como outra me tinham proporcionado momentos saborosos, recheados de amores quentes, vulcânicos e de descrições muito conseguidas da vida mestiça e tão característica de um povo resultante de tantas turbulências históricas.
A releitura de Mal de amores veio confirmar essas recordações. Dos finais do século XIX e princípios do século seguinte, chega-nos a história de três famílias – os Sauri, as Veytia e os Cuenca que serão testemunhas e de alguma forma protagonistas das grandes transformações que irão assolar o panorama político e social do México. A narrativa inicia-se com a história de amor à primeira vista que arrebata os corações de Diego Sauri e Josefa Veytia mas, à medida que avançamos nas suas páginas, outras personagens irão ganhando relevância no desenrolar dos acontecimentos, tais como Milagros, irmã de Josefa, e sobretudo Emilia, filha de Josefa e Diego, e o seu amor de infância (e de toda uma vida), Daniel Cuenca. Testemunharemos o amor e desvelo de mãe que Milagros tem para com Daniel (a quem nenhum laço de sangue a une, apenas a promessa feita à sua mãe de que velaria por ele); a cumplicidade, companheirismo e afeição inquestionáveis que existe na casa da família Sauri-Veytia; o carácter indomável e de feroz emancipação de Milagros, tão diferente do de sua irmã, mas, ao mesmo tempo, tão dependente da doçura algo ingénua de Josefa; as manhãs que Emilia desfruta ao lado de seu pai na sua botica, aprendendo avidamente tudo o que ele partilha com ela; os domingos passados em casa dos Cuenca, onde, entre tertúlias e espetáculos, se delibera sobre o que fazer para derrubar a ditadura de Porfirio Díaz, se discutem os avanços da medicina e a vida do pequeno Daniel e da sua amada Emilia ficam não só irremediavelmente ligadas uma à outra como também arrebatadas por paixões que os farão passar mais tempo separados que juntos – a política, os ideais de justiça e democracia e vocação de ajudar os outros, seja através de cuidados médicos, seja através de uma luta sem fim por um país melhor.
Mal de amores está assim repleto de ingredientes para oferecer-nos uma bela leitura. E realmente cumpre. Desfrutei muito desta releitura, pois, para além do que foi dito, a obra está salpicada de pormenores deliciosos, fruto de uma escrita simples, mas muito criativa, de uma mescla tão própria da cultura literária de escritores como os que referi no início desta opinião, onde a realidade está sempre interligada a um lado mágico, mais fervilhante, mais tropical, tão distinto da forma de viver da “velha” Europa. Por outro lado, é certo que os amores fogosos e insaciáveis de Emilia e Daniel são o prato principal deste romance, mas creio que muitos leitores poderão ser enganados, já que Mal de amores é um título que de imediato associamos a uma história de paixões não correspondidas ou mal resolvidas e a obra que dele resulta é realmente, e como já disse, uma história de amor, mas é muito mais do que isso. É um retrato de um país castrado por uma ditadura, tal como muitos países do continente latino-americano, de uma sociedade constituída por um povo mestiço, que bebeu as suas origens do lado de cá e do lado de lá do oceano Atlântico e que está farto de sofrer. Está farto de sofrer nas mãos de supostos heróis, que, vestidos ou não com fardas de generais e por muitos ideais de justiça e liberdade que levem consigo, se deixarão tentar pelos meandros do poder e da corrupção e farão mais do mesmo. Substituirão uma ditadura por outra.
Daniel, Diego e Milagros são as personagens que mais diretamente estão relacionados com a luta para derrubar o regime ditatorial que governa o México nos finais do século XIX e princípios do século XX. Primeiro lutarão com as palavras, discutindo entre si e outros que defendem os seus ideais, apoiando personalidades como Madero e indo aos seus comícios clandestinos. Depois, a revolução passará das palavras aos atos e Daniel juntar-se-á aos revoltosos e participará no conflito armado que se arrastará por anos e anos e que infelizmente não só não resolverá os gravíssimos problemas sociais e económicos que assolam o país como culminarão naquilo que Diego já havia vaticinado – “Os heróis trazem consigo ditaduras. É ver em que se transformou esse grande herói que o foi o general Díaz.” (pág. 131)
Neste ponto, não posso deixar de recordar e de associar ideias que são defendidas ou por Diego ou por Milagros ou ainda por Daniel – de que para derrubar um ditador, um regime opressor é necessária uma revolução, com ou sem armas – com um filme que me diz muito – Diarios de Motocicleta, que retratam uma viagem que Che Guevara fez pelo vasto território sul-americano (e ainda como apenas Ernesto de la Serna, um sonhador jovem argentino) e que fez germinar os ideais revolucionários que depois o caracterizariam.  Por um lado, percebemos que as fronteiras políticas que separam os países que constituem o vasto continente do antigo “Novo Mundo” são ilusórias, pois o povo é todo um mesmo povo mestiço, com sangue europeu, africano e indígena. Por outro, compreendemos também que essa mistura de sangues e de origens nunca trouxe uma convivência pacífica e foi e tem sido a causa de inúmeros e intermináveis revoluções, sempre com derramamento de sangue e poucas ou nenhumas mudanças. Por fim, comparando, por exemplo, a personagem de Daniel e Ernesto Guevara de la Serna, dois jovens entusiastas, idealistas, cheios de garra para conseguirem concretizar esses sonhos de justiça, liberdade, irmandade e no que os mesmos se transformaram após estarem diretamente envolvidos em revoluções armadas, as palavras de Diego voltam a fazer pleno sentido. Os heróis muitas vezes transformam-se em assassinos ou ficam para sempre contaminados por uma febre de combate, de lutar indefinidamente por algo em que talvez já nem acreditem que poderá ser realidade.
Por fim, deixo aqui algumas passagens da obra e um excerto de Diarios de Motocicleta, um filme que vale por si, mesmo para aqueles que, como eu, não apoiem os passos de Che Guevara, mas que não deixam de admirar e até invejar a viagem que ele protagonizou, com apenas 24 anos, por terras argentinas, chilenas, peruanas e venezuelanas.
“… viajar é uma forma de destino.” (pág. 43)
Daniel – dissera para si própria – podia dividir-se em dois: um era o que montava com ela num corno da Lua, o que ocupava todos os sonhos porque nenhum sonho era melhor do que a realidade quando ele a preenchia. O outro era um traidor que montava no cavalo da revolução para ir fazer a sua pátria noutro lugar que não a sua cama comum.” (pág. 201)
Mas a guerra contra a ditadura não se tinha revelado mais do que guerra e a luta contra os desmandos de um general não tinha feito mais do que multiplicar os generais e os seus desmandos.” (pág. 249)



NOTA – 09/10 (apenas porque não gostei muito do desenlace da história de Emilia e Daniel…)

Sinopse

A história de Emilia Sauri e Daniel Cuenca, cujas vidas se ligaram desde a mais tenra infância para atravessarem em sobressalto todas as peripécias da Revolução Mexicana. Com uma mestria inexcedível, Ángeles Mastretta oferece-nos o retrato de uma mulher tão frágil como aguerrida, que assoma ao mundo moderno despojando-se dos tabus e dos preconceitos que prendiam as suas antecessoras. Uma mulher que não só tem de enfrentar os tradicionais problemas domésticos e femininos, como também os combates políticos da vida do seu país. Uma mulher que se vê obrigada a levar uma vida dupla para poder, contra ventos e marés, ser fiel ao seu primeiro amor.

4 comentários:

  1. Adoro os autores latino americanos. Não conheço esta autora mas já vai ficar em lista de espera!!! Não sabia do teu blog. Tenho um de desabafos, mas que agora está meio parado por falta de tempo...! Parabéns pelo blog! Beijinhos!

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    1. Obrigada, Luisinha! Se gostas de autores latino americanos, vais gostar de Ángeles Mastretta!
      Espero que voltes a "pegar" no teu blog!
      Beijinhos!

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  2. Sim, gostava muito de o reativar... Estava a contar com a rescisão!!! Veremos... Se escrever alguma coisa de jeito, digo-te para ires lá dar uma opinião! Beijinhos!

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